Neste blog, há muito que não se fazia uma crónica sobre um fenómeno musical. Este anda há muito para ser feito, mas acabou por não haver oportunidade de o fazer antes. Aproveitamos, desta forma, o especial 1º aniversário da revista BLITZ, que destacava exactamente este fenómeno para finalmente conseguir abordá-lo.
O 25 de Abril de 1974 transformou completamente o nosso País, e não se ficou pelo aspecto político. Abriu as portas para tudo o que era internacional, telenovelas, música, etc. Fosse o que fosse, o país e a sociedade não eram os mesmos, e as pessoas tinham a necessidade de absorver tudo o que era novo e, principalmente, diferente. Estas transformações atingiram o panorama musical, porque se consumia música que vinha do estrangeiro, mas ninguém cantava em português. As poucas editoras que existiam nem consideravam a hipótese de promover música portuguesa. Mas isso não impediu que surgissem alguns inconformados com esta situação.
No final da década de 70 começam a surgir algumas movimentações neste sentido. Os Tantra enchiam o Coliseu dos Recreios em 1977, ano em que os Arte & Oficio faziam a primeira parte dos CAN num Pavilhão dos Desportos a abarrotar. O movimento Punk português surgia discreto, divulgado por António Sérgio nas noites da Renascença. Os Xutos e Pontapés nasciam sem pressa. Os Faíscas terminam a sua curta existência e das suas cinzas iria surgir o núcleo do Corpo Diplomático. Este grupo, do qual faziam parte Pedro Ayres Magalhães (Heróis do Mar e Madredeus), Paulo Pedro Gonçalves e Carlos Maria Trindade, é o responsável pela introdução no vocabulário pop/rock português do conceito música moderna, que também era o titulo do álbum de estreia, e único da carreira da banda, editado em 1979, que viu a sua morte ser ditada pela recusa de Luís Filipe Barros em passar o álbum no Rock em Stock, na Rádio Comercial. Neste mesmo ano, os UHF já corriam o país, enquanto que Rui Veloso entra em contacto com a Valentim de Carvalho, e os Táxi surgiam da morte dos Pesquisa. Os Xutos tocavam ao vivo, e Vítor Rua, Alexandre Soares e Tóli César Machado ensaiavam, num núcleo no qual um anos depois iriam surgir os GNR.
Foi então que em Julho de 1980 há uma viragem repentina, com um disco chamado Ar de Rock, que nos trazia um tal de Rui Veloso, e uma canção: Chico Fininho. E de repente, tudo muda. No entanto, Rui Veloso garante que os louros não são seus, porque sem a ajuda preciosa de Francisco Vasconcelos e David Ferreira (da A&R Nacional da Valentim de Carvalho) bem como de António Pinho, que produziu o álbum e de Carlos Tê (o letrista) nada disto teria sido possível. Como disse o próprio Rui Veloso, “o que aconteceu em 1980 foi uma sucessão de eventos que conduziram a uma feliz conclusão”.
Outra das contribuições importantes para esta mudança, segundo Ricardo Camacho, foram os UHF, que na altura fizeram, pela primeira vez, uma canção Pop em português; uma canção simples, com três minutos, mais nada!
António Manuel Ribeiro, dos UHF recorda que tudo aconteceu na hora certa. “O Rui Veloso tinha um álbum preparado em inglês e estava a passá-lo para português, quando os UHF bateram à porta da editora, relembrando que para o “boom” do então chamado Rock Português houve um momento importantíssimo: houve uma greve de músicos, em que nem o Festival da Canção teve acompanhamento. Artistas como o Paulo de Carvalho ou o Carlos Mendes não conseguiam gravar. Desta forma, houve uma abertura de espaço porque nem as editoras nem os estúdios podiam estar parados. Neste aspecto, a Valentim de Carvalho foi a editora que teve mais mérito neste processo, já que a Polygram esperou um ano para ir procurar os Táxi.”
A partir deste momento, o mais difícil estava feito, e a adesão da rádio, imprensa e televisão deram o impulso necessário à sustentabilidade deste fenómeno.
Entre o final de 1980 e a Primavera de 1981 surgem no mercado os singles de estreia dos Salada de Frutas, Trabalhadores do Comércio, Street Kids e dos GNR, todos com considerável sucesso. Em Maio desse ano chegaria outro fenómeno, com o álbum de apresentação dos Táxi, quarteto portuense nascido dos Pesquisa e que foram desafiados a fazer canções em Português. Táxi, foi o primeiro álbum a atingir o disco de ouro do rock português, com vendas superiores aos 35 mil exemplares, feito que Ar de Rock de Rui Veloso, apesar de ter sido editado antes, só mais tarde conseguiu atingir.
Segundo Tozé Brito, o promotor dos Táxi, tudo vendia naquela altura, fazendo com que surgissem grupos todas as semanas. Muitos ficavam a milhas do êxito, outros atingiam algum sucesso, ainda que pontualmente, exemplo flagrante disso são os Grupo de Baile com o seu inesquecível Patchouly, um dos maiores casos de sucesso do ano de 1981.
Aliás, este single foi a primeira grande manobra de marketing do rock português, isto em resultado da versão censurada da canção, em que se ouvia “piis” na palavra “pentelho”. Neste sentido a Valentim de Carvalho decide editar duas versões da música, uma censurada e a outra não, sendo que a não censurada vendeu muito mais (quase 100 mil cópias) que a versão pudica. Além de que os “piiis”, não só contornavam o problema, como possibilitou usar a censura a favor dos editores, segundo David Ferreira, que disse que “em vez de escondermos, estávamos a chamar a atenção”. A vida dos Grupo de Baile foi curta, visto que a editora não editou o single que iria suceder a Patchouly, e que teria por titulo O Pirilau do Rock. Desta forma, os Grupo de Baile acabaram por se tornar num dos maiores exemplos de bandas que só tiveram um single de sucesso, nunca chegando a editar um álbum sequer.
Obviamente que a ressaca começava a tomar forma, tal não era o excesso de propostas e edições. Depois de um 1981 de euforia, com êxitos tais como o Robot dos Salada de Frutas, Foram Cardos Foram Prosas de Manuela Moura Guedes, Chamem a Polícia dos Trabalhadores do Comércio e os dois primeiros singles do GNR, Portugal na CEE e Sê um GNR, a vender bem, a ressaca mostrou ser implacável. Citando David Ferreira: “1982 foi o ano dos flops. O segundo álbum do Rui Veloso quase não vendeu, assim como o primeiro álbum dos GNR e o álbum da Lena d’Água. A única excepção foi o máxi single do António Variações.“
Esta ressaca iria deixar marcas, chegando ao ponto de fazer vítimas em nomes como os Street Kids, os Táxi ou os Jáfumega. Estes últimos, que foram um dos grupos mais geniais da história do Rock nacional, desapareceram demasiado cedo, isto porque enquanto os Táxi e os Heróis do Mar vendiam 50 mil cópias, os Jáfumega ficaram-se pelos quatro, cinco mil, e na altura, quem vendesse menos de 10 mil cópias não interessava.
Com Rui Veloso, o primeiro "motor" do fenómeno a cantar "não quero ser estrela do rock'n'roll", a apresentar um álbum de título "Fora de Moda", o capítulo encerrava, para dar entrada a duas novas gerações. A geração pop de meados de 80, com figuras como António Variações (cuja morte levou demasiado cedo), Heróis do Mar, Rádio Macau, Ban e os sobreviventes e transformados GNR na proa dos acontecimentos. E uma geração urbana atenta a raízes antigas, comandada pelos Trovante, acompanhados por uma legião de bandas de recolha das quais poucas sobreviveram aos respectivos 15 minutos de fama.
Quer nos lembremos ou não dos nomes aqui referidos, ou se gostamos ou não dos mesmos, é inegável as marcas que eles deixaram no nosso panorama musical, e se, na década de 90 foi possível assistirmos ao surgimento de nomes sonantes tais como os Clã, os Ornatos Violeta, e já no século XXI dos Toranja, ou até mesmo dos mais recentes Linda Martini, foi muito graças a este fenómeno incontrolável que surgiu no pós 25 de Abril, em que foi possível mostrar que é possível fazer-se boa música por portugueses e cantada em português!